O conteúdo como um caminho de pedras: pelo fomento da criatividade no ambiente escolar

Michelle Kauffmann Benarush
7 min readMay 5, 2021
O Homem das Ideias, trabalho de um aluno de Ensino Médio

Quando pensamos em ensino de Artes, a primeira conexão que fazemos é com a criatividade: “que criativo esse desenho”, “que criativo esse script de teatro”, “essa banda fez um arranjo criativo”. Embora seja possível ser criativo em um desenho, em uma peça ou em uma apresentação musical, esse viés da arte, ou a conexão estrita do ensino das artes com o desenvolvimento da criatividade, não é óbvia nem automática. E, para além das artes, por que não pensar o desenvolvimento da criatividade como uma habilidade a ser desenvolvida nas demais matérias?

Como educadores, refletimos criticamente acerca dos modos de ensino-aprendizagem e avaliamos continuamente os conteúdos e experiências pedagógicas que promovemos na escola. Nas últimas décadas, vimos surgir movimentos utilitaristas, que defendem currículos enxutos, objetivos e de natureza prática. Com frequência, ainda observa-se exemplos de ensino propedêutico, em que o diálogo gira em torno das respostas prontas, que foca unicamente na preparação para exames externos. Entretanto, não devemos reverenciar os clássicos de forma acrítica e repeti-los ad nauseum. Tampouco advogo para que a escola seja refém dos modismos pedagógicos, modificando seus ritos a cada onda. Um dos maiores desafios de uma escola contemporânea é estabelecer quais clássicos irão perdurar e contextualizá-los criticamente.

Dito isso, existem, ao meu ver, habilidades que não podemos mais desprivilegiar. Imaginamos, por exemplo, que alunos aprendem a colaborar apenas nos trabalhos em grupo, a falar em público apenas ao apresentarem seus trabalhos perante a turma ou a serem criativos exclusivamente através das artes. Ora, não podemos crer que, dessa forma, estejamos preparando nossos alunos para o mundo de agora, tampouco o de amanhã, em que delegaremos cada vez mais os trabalhos burocráticos para as máquinas, envolvendo-nos com problemas complexos que exigem criatividade, pensamento crítico e ética.

Desde a popularização das pesquisas de John Dewey e o nascimento do movimento da Escola Nova no Brasil, as aulas meramente expositivas foram cedendo espaço para uma sala de aula mais democrática e menos dependente das respostas únicas. Aos poucos, nós, educadores, precisamos buscar recursos criativos para propor dinâmicas que engajem o aluno para além de ouvir e reproduzir certezas. Entendemos que podemos até ser bons “ensinadores”, mas isso não torna nossos alunos bons aprendizes automaticamente. Essa reflexão dialoga muito com a perspectiva Freireana de que ensinar é criar possibilidades para produção ou construção do conhecimento. Pergunto-me que possibilidades estamos criando.

Essa indagação não se contrapõe à valorização do conteúdo per se. Gosto de pensar no conteúdo como um caminho de pedras, que ampara o aluno no seu percurso. Mas para onde queremos levá-los?

A importância das Habilidades do Século XXI tem sido vastamente discutida nos meios pedagógicos nos últimos anos. Já me parece estabelecido que, ao nos prepararmos para a terceira década deste século, devemos abrir espaço na educação para a Colaboração, o Pensamento Crítico, as Habilidades Socioemocionais e para a Criatividade, para citar apenas alguns conceitos usados nos ambientes escolares e, muitas vezes, fora deles. Sabemos, intuitivamente, que essas habilidades são essenciais para esse mundo complexo e dinâmico em que vivemos. Já as evidências nos mostram que o desenvolvimento destas habilidades preparam nossos alunos a aprender e aplicar conceitos complexos, o pensamento analítico e a cooperação.

Voltando à analogia dos conteúdos como caminhos de pedras, devemos nos esforçar para apresentar conceitos acadêmicos e teóricos de forma criativa, mas devemos entender que, se pararmos aí, não estamos necessariamente desenvolvendo a criatividade no aluno.

É importante nos perguntarmos: meu ensino é criativo ou desenvolve a criatividade? E, se apontarmos o desenvolvimento da criatividade em nossos alunos como uma prioridade, como proceder?

No TED Talk mais visualizado de todos os tempos, “Do Schools Kill Creativity?”, de 2006, Sir Ken Robinson define a criatividade como “o processo de ter ideias originais de valor”. Importante observar a diferença entre inovação, imaginação e criatividade. Enquanto a inovação tem como premissa a novidade, e a imaginação se apresenta pelo pensamento do que não está presente, a criatividade tem um quê de praticidade. Ainda segundo Robinson, “você pode ser imaginativo o dia todo e nunca produzir coisa alguma. Para ser criativo, você precisa produzir algo”.

Quando refletimos sobre a ideia arraigada da criatividade ou do talento para poucos, notamos que ela serve ao propósito de diferenciar os criativos. Os criativos se refugiam em um castelo no topo da montanha, enquanto os meros mortais se amontoam aqui nas planícies. A ótica da criatividade genial, instintivamente relacionada ao criador de arte bela, antagônico ao comum, ao popular, ao feio, me parece elitista. A perspectiva da criatividade democrática se baseia na capacidade de ter ideias, e ter ideias é inerente ao ser humano. Podemos definir a criatividade como uma atividade imaginativa que produz resultados originais e valiosos. O criativo é, portanto, o oposto do sem imaginação, do rotineiro, do clichê, do ineficaz.

Como qualquer habilidade, a criatividade pode ser vista como um músculo a ser desenvolvido. Quando a exercitamos, aprendemos a aceitar tudo que ela carrega, ficamos mais à vontade com a ambiguidade e o erro. Passamos a olhar o erro como uma etapa do percurso, apontando o que precisa ser aprimorado. Quando não praticamos a criatividade, buscamos o caminho óbvio da aceitação, evitando o desconforto do equívoco, e a frustração da desaprovação dos pares. Passamos a nos definir como não criativos. Dito dessa forma, a criatividade tem pouco a ver com genialidade e arte.

A questão mais urgente não me parece ser mais se o desenvolvimento da criatividade é papel da escola, mas como as escolas podem fomentar o desenvolvimento dessa habilidade. Com mais frequência do que desejamos, caímos na falácia de medir apenas os conteúdos duros, com a desculpa de que apenas eles são passíveis de objetividade. Já a aferição de certas habilidades, relegada à caixa de pandora das subjetividades, cujas arestas nos causam desconfiança.

Essa abordagem é problemática, pois a intencionalidade do método deve amparar todas as práticas pedagógicas. Assim como nós não simplesmente esperamos que a alfabetização aconteça naturalmente, não devemos esperar o desenvolvimento da criatividade sem intervenção intencional e planejada.

Fato é que para nos certificarmos que nossos alunos estão aprendendo e desenvolvendo as habilidades propostas, precisamos estar atentos tanto aos instrumentos de nossas avaliações, quanto como avaliamos essas demonstrações de aprendizado. Os instrumentos podem ser provas, projetos, trabalhos e apresentações, entre tantas outras formas. Os instrumentos nos permitem observar evidências de aprendizado, que nos dão subsídios para apoiar e orientar o aluno a como prosseguir. Já para avaliar, podemos usar rubricas, feedbacks orais, comentários escritos e podemos dar inclusive a chance de autocorreção. Portanto, se o foco é no que pode ou deve ser medido, e se medimos apenas conteúdos, o foco será sempre no conteúdo.

Um ponto importante sobre a criatividade é que, para sermos criativos, precisamos estar em um ambiente acolhedor, que permita a pessoalização nas respostas, que incentive a pesquisa, que abra espaço para a exploração e para o lúdico, que seja generoso com os erros de percurso e que considere o crescimento tanto quanto o resultado. Nesse contexto, devemos buscar, através da nossa prática, estabelecer que a escola não é um espaço que existe unicamente para preparar alunos para exames externos.

Uma avaliação que contemple a criatividade pode incluir um olhar para o processo (planejamento, pesquisa/desenvolvimento, incorporação de feedback, produto final), geração de ideias divergentes, soluções múltiplas para o mesmo problema, buscas de referências confiáveis. A prova tradicional que privilegia a memorização não deve ser considerada como um fim. É necessário identificar os indicadores de sucesso: quais são exemplos e não-exemplos desse objetivo? Quais seriam indicadores de criatividade e pensamento crítico na sua matéria? As respostas a essas perguntas nos mostram que esses objetivos são mensuráveis.

Um equívoco frequente é associar criatividade com liberdade. Proponho pensar a liberdade dentro de um espectro. De um lado, os professores determinam o conteúdo, o processo, o ritmo e o produto final. Zero escolha. Do outro lado, a aula cuja falta de diretriz impede o avanço dos alunos. Já o caminho do meio se apresenta como uma possibilidade mais interessante, em que os alunos podem fazer certas escolhas e se arriscarem dentro de um contorno intencional. Posso iniciar minha aula com uma pergunta aberta, convidando o aluno a refletir sobre o que vem pela frente. Posso oferecer feedback em formato de perguntas que promovam autoconsciência no aluno acerca do que ele conhece e do que ainda é preciso descobrir. Quando os alunos enfrentam uma dificuldade, devo suprimir minha vontade de oferecer respostas e fazer perguntas que despertem sua vontade de seguir buscando. É sabido que as sugestões encorajam a dependência de novas sugestões e reiteram a mentalidade de que existe somente uma forma de chegar na resposta.

O desenvolvimento da criatividade vem do conforto em formular perguntas e pensar sobre os problemas a partir de uma ótica particular. Pensar em um ambiente escolar que desenvolva a criatividade parte da premissa de que o aluno precisa ser coautor para aprender e que ser um professor que ensina não garante a qualidade da aprendizagem dos alunos. Ao pensarmos nossas unidades de ensino, nossas aulas e avaliações, devemos explorar nossos conteúdos olhando também para o que significa criatividade em nossas disciplinas. A partir dessa reflexão, devemos criar espaços para o desenvolvimento de ambas.

O ensino para a criatividade depende de uma sequência pedagógica apresentada em forma de processo, que exige ora o pensamento divergente (geração de ideias), ora o pensamento convergente (combinações de ideias que levem a um resultado final). Em suma, exige que o aluno manipule o conteúdo de forma menos linear e padronizada. O objetivo deixa de ser percorrer o menor caminho para se chegar ao ponto final e passa a valorizar também o percurso. A criatividade acontece quando o aluno usa seu conteúdo como um caminho de pedras e, a partir dele, desenvolve sua própria voz.

Esse texto foi originalmente publicado na 1ª Edição da Educação Re-Vista (2021). Para baixar a edição completa, acesse: http://educacaorevista.com.br

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Michelle Kauffmann Benarush

Educadora & autora. Acredita que o mundo não está dividido entre “criativos” e “não criativos”.